Aguarela, de Pedro Medeiros

BPI_1588Aos 17 de Maio, o Dia Internacional de Combate à Homofobia e Transfobia, inaugura em Coimbra, na sede do Círculo de Artes Plásticas desta cidade (CAPC), a exposição de fotografia de Pedro Medeiros Aguarela, um projecto integrado no Plano de Iniciativas para o Combate à Discriminação pela Orientação Sexual e Identidade de Género, organizado pela Saúde em Português (Organização Não Governamental para o Desenvolvimento situada em Coimbra). Com este Plano de Iniciativas, a Saúde em Português intenta difundir informação e sensibilizar a sociedade para as questões relacionadas com as orientações sexuais, identidade de género e com os direitos da população Lésbica, Gay, Bissexual, Travesti, Transexual e Transgénero (LGBTI), diligenciando pela sua real integração. Decorre desta iniciativa a publicação, nos espaços publicitários de Coimbra, de um conjunto de imagens e de depoimentos escritos, ampliando o alcance do Plano que assim se dissemina publicamente.

A Saúde em Português tem como objectivos primordiais promover a integração social e comunitária, a saúde, a igualdade de género, o desenvolvimento sustentável e os direitos humanos, através da promoção, divulgação e apoio ao desenvolvimento, da assistência humanitária e da ajuda de emergência, incrementando o voluntariado em Portugal e internacionalmente. Faz parte do plano de acção desta organização o apoio e desenvolvimento de actividades culturais. Por todos estes motivos devemos felicitar esta instituição, bem como a iniciativa que traz a público, com mais uma exposição feita de imagens que se demoram na retina.

Não é a primeira vez que o fotógrafo coimbrão Pedro Medeiros trabalha na parceria com a Saúde em Português. Basta que nos recordemos da instalação fotográfica Mercadoria Humana, integrada no plano de sensibilização para o tráfico de seres humanos (inaugurada em Coimbra, 2011), da Reescrita: uma exposição pela igualdade de género, no âmbito da iniciativa global EmPoder Delas (Projecto sobre a Participação das Mulheres na Vida Política, inaugurada em Coimbra, 2013), da exposição PUBLIGUALDADE (Coimbra, 2013), inserida no âmbito do projecto PRECONCEITO ZERO – Trilhos da Igualdade, que inquiriu sobre as representações de género nas mensagens publicitárias e sobre o (ab)uso da imagem da mulher nos media para que possamos entender as propostas desta companhia estabelecida entre a arte de Pedro Medeiros e a Saúde em Português.

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O discurso imagético de Pedro Medeiros, profundamente plástico, cenográfico, e de grande densidade emotiva, determina uma correspondência muito afortunada entre a forma e o conteúdo expressivo, ou entre a beleza e a crueza das mensagens que expele, relacionadas sempre com um plano conceptual onde imperam os seres humanos e as suas múltiplas inquietações.

O trabalho de Pedro Medeiros expurga o que de mais íntimo há no Homem, construindo elocuções estéticas que advêm do seu modo especial de ver o mundo, motivado pelas realidades sociais e políticas, mas também pelas emoções como a dor, a solidão, o medo, o amor, e motivado pelos seus próprios desígnios disseminadores que o impelem à revelação, impregnada de intensos códigos expressivos que remetem o observador para lugares e ambientes que, embora irreais e extravagantes, conduzem a leituras lúcidas sobre o mundo e, especialmente, sobre o Homem. A obra de Pedro Medeiros situa-se precisamente entre a aproximação ao real que se antevê através dos conteúdos e dos conceitos que o autor trabalha, e a fuga à realidade através da linguagem artística que constrói com base em valores estéticos e simbólicos imperantes, promovendo experiências individuais pungentes.

Como o próprio autor nos advoga, a «fotografia é uma constante novidade, é o imaginário e a realidade em acção, é um combate diário, é a mais perfeita forma de fuga à rotina sufocante». E nesta sua fuga ao sufoco imposto pelas rotinas, Pedro Medeiros eleva o mundo a um lugar de efervescências, ao seu lugar interior que trabalha com um sentido preciso de esclarecer, dizendo, através das suas configurações que reúnem as tantas palavras passíveis de proferir-se.

Em Aguarela, Pedro Medeiros mostra um conjunto de 14 fotografias que consubstanciam retratos a preto e branco das mulheres e dos homens que encarnam o Plano de Iniciativas para o Combate à Discriminação pela Orientação Sexual e Identidade de Género, bem como a instalação fotográfica Natureza, que dilata o ciclo de pensamento sobre os assuntos relacionados com a questão da identidade de género.

Entrando nas salas do CAPC deparamo-nos com os retratos de alguns membros das seguintes associações: ActiBIstas – Colectivo Pela Visibilidade Bissexual Grupo Transexual Portugal; ILGA Portugal – Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero; não te prives – Grupo de Defesa dos Direitos Sexuais; Opus Gay – Obra Gay Associação; Panteras Rosa – Frente de Combate à LesBiGayTransFobia; PortugalGay.pt; rede ex aequo – Associação de jovens LGBTS.

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Numa sala à parte (a sala preta) confrontamo-nos com a instalação fotográfica Natureza que consubstancia um conjunto de pequenas fotografias de flores integradas com expressões de alguns dos retratados. O que liga estas duas mostras num plano integrado é, precisamente, o inquérito sobre a humanidade enquanto elemento natural.

Somos todos um, acreditamos quando nos mostramos livres para a especulação puramente teórica, ou mesmo quando nos disponibilizamos a encarar o Homem sob o cingel judaico-cristão. Ainda assim, e na prática quotidiana, ou quando o Homem se manifesta através do seu comportamento fortemente condicionado pelas condutas normativas que o enformam desde os alvores da Idade Média, a máxima esvanece-se em múltiplos significados reconsiderados e afastados do seu sentido último. Quer isto dizer que a natureza ensina o Homem no silêncio da sua própria simplicidade e quer isto dizer que para sermos todos um nos devemos encarar como elementos que pulsam no interior de um sistema natural integrado que não acolhe a ideia de desigualdade, mas que se revive na ideia de unidade na singularidade. E quer isto dizer que a conduta anti-natura é a da rejeição da naturalidade do ser vivente.

A Natureza, essa mãe de tudo quanto há e que impele, esse processo prenhe de vida na sua forma biológica complexa e comportamentalmente tão simples, resplandece sobre todos os condicionalismos e sobre todas as convenções, sobre todas as normas que o Homem vem imputando, desviando-o do ciclo da vida do qual deveria fazer parte sem mácula e sem pudor, porque assumidamente natural. Numa justa conclusão, a Natureza não é desarticulada nem discriminatória e recria-se neste fascínio perene através da sua própria e competente matriz bissexual, transexual, homossexual e heterossexual, sendo toda e apenas uma, e abrigando o Homem que nela se totaliza, unificando-se como sujeito natural e, por isso, significativamente uno na sua rica e infinita diversidade.

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É sobre tudo isto que nos fala Pedro Medeiros na sua exposição rica em imagens cruzadas (os retratos e a instalação), em símbolos e em referências. Nas suas palavras, na «fotografia continuo a procurar, a interrogar, recuso dogmas, normas, doutrinas, grupos e convenções», agindo de acordo com «o desejo insaciável de Liberdade».

E essa liberdade impele a que nos disponibilizemos a sentir desafrontadamente, respirando os rostos, as mãos, as poses, os corpos e a pele que o fotógrafo nos oferece de forma segura, transferindo-nos retratos de vidas viageiras (como as imagens de Luís Reis ou de Miguel Guerreiro e de Tomás Carvalho), impregnadas em amor (Violeta Pereira e Helena Braga, ou Sara Marques e Célia Patrício), de vidas que se prezam, prezando todas as vidas (no conjunto da exposição), de vidas íntegras que se expressam através do olhar disseminado no tempo que se encara de frente (João Paulo, António Guarita, Eduarda Santos, Lara Crespo, Miguel Guerreiro, Tomás Carvalho, António Sarzedo), de vidas festivas (Morgana) e retrospectivas (Bruno Magina), de vidas seguras que abrem espaço à segurança das demais vidas (Ana Cristina Santos, Hélia Santos, Luciana Moreira e Vânia Costa).

No conjunto desta exposição experimentamos as palavras de Nietzsche, quando nos diz que somos corpo, ultrapassando esta verdade porquanto nos impelimos a defendê-la. Na presença destas poderosas imagens é-nos impossível escapar ao comprometimento com esta dimensão corpórea, com esta esplêndida relação que mantemos com o mundo através do corpo que somos e através da razão que o próprio corpo consubstancia, confirmando a sua densa função que é apresentar-nos enquanto sujeitos. E para que nos possamos manter como sujeitos devemos estar cônscios de que fazemos parte de um todo, e de que o todo é mais do que o resultado da soma das partes. O todo configura-se na integridade que resulta do facto de sermos um e, para isso, vivamos em conformidade com os ditames da natureza, ao invés de sobrevivermos confinados pelos ditames das convenções.

Texto de Carla Alexandra Gonçalves
Fotografia de Bruno Pires

(Publicado a 17 de Maio de 2014)

 

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