Representações no feminino

  BPI_3150Escolhemos, para esta semana de janeiro, visitar o Museu Municipal de Coimbra instalado, desde 2001, no Edifício Chiado, uma peça de arquitectura que marcou (e marca) profundamente a Baixa da cidade.

O Museu Municipal abriu em 2001, passando a guardar a importante Colecção de Maria Emília e José Carlos Telo de Morais. Desta vasta e importante colecção de obras de arte, conseguida através de anos de escrupulosas aquisições levadas a cabo por Telo de Morais (médico, professor, mas também pintor, ensaísta e amante das artes) fazem parte os núcleos principais de pintura, escultura, mobiliário, cerâmica e pratas.

Da extensa colecção de Telo de Morais foram seleccionadas algumas obras para integrar a exposição Representações no Feminino, com programa expositivo de Raquel Magalhães e Joana Barata que agora apresentamos.

A mostra, que exibe um conjunto de 42 obras, divide-se em duas áreas especiais: Representações de Mulheres e Representações por Mulheres. A primeira área conta com desenhos e pinturas subordinados ao temário feminino. Nesta primeira ala expositiva podemos apreciar trabalhos de Cipriano Dourado (1921-81), José Stuart Carvalhais (1887-1919), António Soares, Tom (Thomaz de Mello, 1906-90) Diogo de Macedo (1889-1959), Eduardo Vianna (1881-1967), Jorge Barradas (1894-1971), José Malhoa (1855-1933), Columbano (1857-1929), Henrique Medina (1901-1988), Lauro Curado (1908-1977), entre outros nomes de artistas de entre os séculos XIX e XX.

O conjunto oferece-nos uma panorâmica interessante do olhar do homem sobre o imaginário feminino e sobre a imagem que ele tem da mulher. De uma forma muito geral, aqui se retratam várias mulheres, em várias situações do seu quotidiano, mostrando-se nas plantações, nas feiras e nos mercados, nas ruas e em casa, ou simplesmente sonhando, fumando, olhando-nos sempre como quem olha para quem tenta ver para além dos olhos e imagina ver. Nesta ala da exposição podemos ver, então, várias mulheres que o olhar masculino traduz e firma, e que é o olhar que o homem detém sobre as mulheres da sua época. Representam-se as mulheres agitadas e que trabalham, e também as que se recatam em casa, ou ao ar livre, sem qualquer preocupação para além do seu dia-a-dia lento, encerrado nas tarefas que competem a uma certa categoria de mulher. Ainda assim, estas mulheres são todas escritas numa letra que lhes confere a singularidade que possuem.

A área da exposição reservada às Representações por Mulheres, que se consubstancia numa outra porção da Colecção Telo de Morais, foi a que mais nos inquietou. Esta reunião incomum de obras exibe o olhar de algumas mulheres sobre elas mesmas e sobre a (sua) realidade. De entre as mulheres que se expressam, constam Ofélia Marques (1902-52), vencedora do prémio Souza-Cardoso em 1940, Sarah Afonso (1899-1983), mulher de Almada Negreiros e que dispensa apresentações, Maria Keil (1914-2012), pintora, cenógrafa, figurinista, mulher do arquitecto Francisco Keil do Amaral, com densa obra azulejar, Raquel Roque Gameiro (1889-1970) e Helena Roque Gameiro (1895-1984), aguarelistas, filhas e discípulas de Alfredo Roque Gameiro, Zoé Wauthelet (1867-1949), mulher de Batalha Reis e aluna dilecta de José Malhoa, Maria de Lourdes de Mello e Castro (1908-92) última aluna de Malhoa, Eduarda Lapa (1897-1976), a primeira mulher inscrita na Académie Moderne, Paris, anos 30 do séc. XX, Clementina Carneiro de Moura (1898-1992), aluna de pintura de Columbano e casada com Abel Manta, Aurélia de Sousa (1866-1922), outra conhecida pintora que estudou em Paris e a trágica Josefa Greno (1850-1902) importantíssima mas malograda pintora dos séculos XIX e XX a quem nos referiremos depois.

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Destacamos este grupo pictórico realizado por mulheres (artistas), pela sua relevância particular e porque nos permite caracterizar a personalidade do seu coleccionador que não escolhia as suas obras ao acaso, mas seleccionava trabalhos de grande qualidade artística dando assento às obras realizadas por mulheres, e porque nos permite observar alguns trabalhos das mais significativas pintoras portuguesas dos sécs. XIX e XX, quase sempre menos notadas do que os seus congéneres masculinos. Cumpre-nos referir que o trabalho de legendagem de cada uma das pinturas permite aos visitantes constatar, ainda que de forma resumidíssima, quem eram estas mulheres.

De entre estas artistas aqui representadas, várias estudaram em Paris, pertenceram à Sociedade Nacional de Belas Artes, expuseram amiúde em Portugal e fora do país, receberam prémios, leccionaram e viveram as suas vidas de forma activa e criativa, dando origem a comentários e a críticas que, no seu tempo, ultrapassaram a fortuna posterior. A pequena aura gerada por algumas destas mulheres, porque mais retraídas e discretas do que os seus pares masculinos, porque entendidas sempre como mulheres (ainda que algumas pintassem como homens) foi-se perdendo no tempo.

Poucas mulheres pintoras mereceram encómios enquanto vivas, faltando-lhes o bigode oitocentista que as garantisse no mundo da arte dominada pelo masculino, salvando-se (ainda que de forma parcimoniosa) as que se conheciam como as filhas do, ou as esposas do pintor. Escaparam à ironia deste apelido as mulheres que foram merecidamente premiadas, porque viram legitimado o seu trabalho.

Desta colecção de pintura feita por mulheres consta a pintora de flores e frutos Josefa Greno (1850-1902), cuja história de vida e obra testemunha estas palavras que reservamos à fortuna das mulheres artistas. Josefa Greno, de origem andaluza, chegou a Lisboa no início dos anos setenta do séc. XIX, onde conheceu o estudante de pintura Adolfo Greno, com quem viria a casar, abalando-se o casal para Paris. Nos finais da mesma década, e porque Adolfo Greno deixou de trabalhar dedicando-se à vida boémia quase em exclusividade, Josefa decide suportar a família e aprende piano e pintura, actividade à qual ficou ligada por vocação. Chegada a Lisboa, expõe na XIII Exposição da Sociedade Promotora de Belas Artes (1884), facto que lhe mereceu os mais variados aplausos como pintora de um realismo singular, bem como a atenção de Silva Pinto, que a chamou para trabalhar com o Grupo de Leão (1886), estimando-a mais do que ao marido na medida da qualidade da sua obra. Produzia e vendia bem, ensinou pintura, participou num vasto conjunto de exposições, sempre com um alargado grupo de obras, destacando-se no círculo artístico do seu tempo e espaço.

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Apesar da sua intensa e promissora vida artística, a vida familiar degenerava-se. Os desentendimentos com o marido cresciam rapidamente e a meio da década de noventa Josefa Greno mostrava-se fatigada e a crítica artística de então aproveita-se desse fenómeno, fragilizando-a. Em Abril de 1901, durante uma desavença com o marido, Josefa dispara uma pistola com intuitos intimidatórios. E na noite de 25 para 26 de Junho atinge-o com quatro tiros, pelas quatro da madrugada, no quarto da casa de morada na Travessa de S. Mamede. Josefa Greno foi imediatamente presa e, pouco tempo depois, foi dada como louca e internada em Rilhafoles sem poder receber visitas. Nunca mais ninguém soube dela, a não ser através da publicação dos resultados médicos que a deram como doida. Faleceu em 1902, numa altura em que de celebrada pintora, passa Josefa Greno a comentar-se de forma negativa desaparecendo definitivamente da história e da crítica artística.  Afinal, Josefa Greno era a pintora assassina, ficando claro que deveria esquecer-se.

Na realidade, todas estas mulheres (as presentes nesta mostra da colecção Telo de Morais, bem como tantas outras, algumas ainda ignotas) aguardam pelas investigações que as dignifiquem enquanto artistas plásticas de grande vulto no contexto da historiografia artística portuguesa. Faltam estudos críticos, corpus de obra, monografias e estudos comparados que nos permitam entender este fenómeno ainda muito apagado, o das mulheres que aprenderam a pintar e que viveram as suas vidas pintando, para além das tarefas que lhes estavam naturalmente atribuídas e que lhes ofereceram competências específicas, relacionadas depois, e muitas vezes, com os seus horizontes expressivos, de imbatível sensibilidade e de olhar aberto ao mundo.

Esta ala das Representações por Mulheres, na Exposição Representações no Feminino testemunha esta riqueza perceptiva, tão singular e isenta de lugares-comuns, verdadeiramente humana e deslumbrante, consubstanciada através de uma paleta riquíssima e vibrante usada no retrato íntimo do olhar feminil sobre ela mesma, sobre espaços e lugares e sobre as suas próprias inquietudes.

A mostra que nos traz ao afamado Edifício Chiado, e que reúne num só caso expositivo estes olhares femininos sobre a realidade, abre novamente a ferida relacionada com as questões que não são novas: a omissão das Senhoras-artistas dos séculos XIX e XX da historiografia e da crítica, o fácil esquecimento de um vasto grupo de figuras importantíssimas no panorama artístico nacional, a urgente necessidade de pesquisa séria e fecunda sobre esta realidade que conhece os primeiros passos nos alvores do século XXI. A história da arte portuguesa merece que salvemos este prodigioso capítulo que, decerto, trará grandes novidades que ajudarão a moldar o conhecimento de uma época fervilhante.

Texto de Carla Alexandra Gonçalves
Fotografia de Bruno Pires

(Publicado a 23 de Janeiro de 2014)

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