O grupo escultórico das Ciências

  BPI_7804Depois de nos dedicarmos ao conjunto escultórico da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, passemos ao grupo congénere que se esculpiu para a fachada lateral, voltada para a Praça da Porta Férrea, do Departamento de Física da Faculdade de Ciências e Tecnologia.

O espaço dedicado à edificação dos dois departamentos da Faculdade de Ciências e Tecnologia estava ocupado, antes do derrube empreendido aquando das obras de reedificação da Cidade Universitária que temos vindo a revisitar, por vários quarteirões de denso casario. Desmantelou-se a primeira linha de prédios que contava, por exemplo, com o Colégio de S. Paulo o Eremita (edifício que depois abrigaria a tão célebre Associação Académica de Coimbra), entre várias lojas e tabernas sob casas de habitação, para regularizar a extensão da anterior e mais acanhada Rua Larga. Da segunda rua, abaixo e paralela a esta, destruíram-se outros conjuntos habitacionais, bem como a famosa e antiquíssima igreja de S. Pedro, facto que deu azo a um sem número de querelas que viriam a lume tarde demais nos jornais locais.

O desenho dos dois departamentos da Faculdade de Ciências e Tecnologia, que hoje nos importam, são da mão do já conhecido arquitecto Lucínio Guia da Cruz. A construção dos edifícios partiu de 1966 para terminar em 1975. O mesmo ano de 1966 marca a saída de Cristino da Silva do cargo de vogal-arquitecto do CAPOCUP, deixando espaço livre para a actuação de João Vaz Martins (até 1975), numa altura em que faltava pouco para a extinção da Comissão (ocorrida em 1969, ano da sua integração na Direcção-Geral das Construções Escolares), bem como para a conclusão das empreitadas na nova Cidade Universitária. A actividade de João Vaz Martins foi por isso muito reduzida, bastando-se ao acompanhamento das obras então em curso (departamentos da Física, Química e Matemática e estabilização da Praça D. Dinis com a permanência do Colégio de S. Jerónimo).

O grupo escultórico da fachada lateral dos edifícios da Faculdade de Ciências e Tecnologia foi ideado por Leopoldo de Almeida, o escultor que tinha concebido o grupo da Medicina, e foi colocado in loco entre o final dos anos 60 e o termo da construção dos blocos, em 1975.

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Restam pouquíssimas informações sobre este grupo escultórico que tem sido contado como a representação da Ciência, ou das ciências Física e Química, ou ainda como Minerva ladeada pela Matemática e pelas Ciências Naturais, entre outras possibilidades de nomeação que confirmam a dificuldade em discernir as personagens que encorpam este conjunto. As tantas nomenclaturas deste grupo prendem-se com a incompreensão da iconografia das figuras que o compõem, mas também devem provir das hesitações do autor do desenho, que o legendou de forma vaga. No Centro de Artes das Caldas da Rainha guarda-se uma maquete deste grupo feita em gesso (n.º inv. LA-0048) e um desenho em papel (n.º 633) com a seguinte inscrição: «F. Ciências/ Ciências Matemáticas/ Ciências físico-químicas/ Ciências naturais ou biologia.».

Cumpre-nos agora raciocinar, no sentido de tentar minguar este mistério. A construção dos blocos da Faculdade de Ciências e Tecnologia constituiu-se como um processo demoradíssimo (entre 1942 e 1975) e indeciso: ora surgiam os departamentos de Matemática, Física e Química agregados, ora separados (como depois viria a acontecer com a Matemática a ocupar o lugar deixado vago pelo derrube do Colégio dos Militares, depois Hospital dos Lázaros). A estabilização dos projectos ocorreu em 1959 e o Departamento de Matemática, sozinho, viria a inaugurar-se no afamado mês de Abril de 1969. As obras relativas à edificação dos blocos da Física e da Química arrancaram em 1966 mas, e ainda assim, estas edificações constituem-se, com a Matemática, como um unum (num dos projectos de Lucínio da Cruz para a Matemática podemos ver uma ligação, através de uma colunata muito aérea, ao Departamento de Química) facto que pode ter determinado a opção de Leopoldo de Almeida por incluir a sua referência no conjunto escultórico que agora nos preocupa.

O facto de o artista ter realizado o trabalho para a Medicina antes do que realizou para as Ciências, ter-lhe-á facilitado a escolha dos volumes para esta segunda fachada, constituído também por uma tríade de personagens. Ainda assim, esta segunda encomenda pode perfeitamente ter-se feito a par da primeira (e estamos certos disso, na medida em que estes dois grupos de escultura consubstanciam um par, tirando ligeiros desfasamentos de ordem técnica), embora a sua realização tenha dependido do andamento da arquitectura. Se assim foi, não custa acreditar que o escultor tenha destinado uma das figuras para personificar a Matemática.

Mas observemos o grupo para o descobrir, tentando afastar as hipóteses de identificação estabelecidas, bem como a legenda do desenho do escultor guardado no Centro de Artes das Caldas da Rainha que pode induzir em erro os mais incautos.

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A escultura central do conjunto das Ciências tanto pode representar a grega Atena (filha de Zeus) como a romana Minerva, a deusa das mil obras (como escreveu Ovídeo) que nasceu da cabeça de Júpiter. A imagem ostenta um elmo, um escudo e uma lança, os mesmos atributos devidos a Atena, a sua correspondente helénica, e tal como é usual acontecer para a representação desta deusa que apadrinha as artes (liberais e escolares), a sabedoria, a justiça, a beleza e a guerra, etc.. Se observarmos atentamente esta figura, podemos ver que o seu capacete ostenta três cavalos, e que dos lados desse elmo surgem duas asas, numa possível alusão aos corcéis alados de Pégaso que Minerva domou.

A serpente que assoma aos pés da figura pode constituir-se como um atributo de Atena, aludindo à vitória – a nikê (Athena e Nikê) –, ou como uma alusão a Minerva através de Erecteu (recém-nascido e deposto, como um verme ou uma serpente, aos pés de Minerva que o protegeu), estabelecendo-se assim uma ponte entre Minerva e Higeia, e, consequentemente, entre as figuras femininas dos dois grupos de Leopoldo de Almeida (o da Medicina e o das Ciências). Em conclusão, esta figura pode representar Atena-Minerva, na medida em que ambas as leituras estão correctas mas, se quisermos fundar uma ligação entre este, e o grupo da Medicina, devemos optar pela versão romana e nomear esta personagem como Minerva.

Já as figuras que ladeiam a deusa, e porque ostentam ambas atributos que remetem para o trabalho da ciência, da geometria, do cálculo, da medição, devemos inquirir sobre quem procuram representar. De entre as primeiras hipóteses mais gerais começámos por nomes tais como Pitágoras, Arquimedes, Galileu (Newton e Einstein estão já fora das cronologias seleccionáveis)… Ainda assim, o facto da personagem da nossa direita vestir um trajo que alude aos séculos XVI-XVII, contrariamente à indumentária clássica visível nas demais esculturas, leva-nos a pensar numa clara e intencional individualização desta configuração. Quem é o homem que mede a terra com um instrumento que nos recorda o compasso geométrico de Galileu, mas cuja vestimenta recua a anos anteriores aos do cientista italiano? A suposição de tratar-se da exibição de Pedro Nunes afigurou-se, então, como a mais plausível de entre as restantes, se juntarmos à vestimenta os motivos presos com a relevância deste cientista do renascimento coimbrão. Comparada esta representação com a que figura no Padrão dos Descobrimentos (do mesmo autor e passado à pedra em 1960) não nos sobraram quaisquer dúvidas de identificação. No grupo coimbrão das Ciências esculpiu-se a figura de Pedro Nunes, do lado direito de quem observa o grupo.

Quanto à configuração masculina que empunha um cilindro e uma esfera nas mãos, atrevemo-nos a supor tratar-se da alusão à Matemática, como acima já dissemos. De entre as tantas possibilidades que fomos arredando (como a hipótese de tratar-se de Pitágoras, por exemplo), e centrando-nos exclusivamente nos atributos da peça, chegámos a Arquimedes, cujos trabalhos sobre a esfera e o cilindro marcaram a história da matemática. Arquimedes estabeleceu um encadeamento de proporções, volumes e áreas, fundando uma norma para o volume e área de superfície para as esferas e cilindros, bem como a seguinte relação: o volume do cilindro corresponde a três meios do volume da esfera; a área de superfície do cilindro (incluindo ambas as extremidades) corresponde a três meios da superfície da esfera. Foi esta demonstração que Leopoldo de Almeida concebeu em pedra, na personificação do trabalho científico desenvolvido por Arquimedes.

O grupo escultórico das Ciências foi passado à pedra de uma forma mais espessa do que o da Medicina, se olharmos para as mãos, os pés, os drapeados das roupas que vestem as personagens, entre outros pormenores que nos sugerem um tratamento técnico da pedra pouco impressionável.

Este conjunto, tal como o seu congénere, faz-se de imagens que não nos vêem, que não nos inquietam, que não nos confrontam nem nos deleitam. São figurações abstractas, ou os retratos de um género ecuménico, ao invés dos retratos de pessoas singulares e insufladas de uma alma particular. Cada uma destas figuras personifica um todo e consubstancia um universo e é por isso que não exprimem nem detalham (tirando a representação de Pedro Nunes) mas demonstram e referem o que deixam correr através do seu significado.

Texto de Carla Alexandra Gonçalves
Fotografia de Bruno Pires

(Publicado a 21 de Novembro de 2013)

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