Esculturas dos cunhais da Biblioteca Geral

BPI_8665No seguimento do conjunto de artigos dedicado à escultura monumental da Cidade Universitária, cabe agora a vez aos grupos escultóricos que ladeiam a fachada da Biblioteca Geral. Recuperemos o que temos vindo a dizer sobre as obras decorrentes durante os anos 40 e 50 do século XX para podermos entender o contexto em que estas peças devem situar-se.

Como dissemos no artigo anterior, a Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra veio ocupar o edifício cuja última utilização tinha sido a Faculdade de Letras. Mas a história do uso deste espaço remonta ao longínquo século XII. Como deverão lembrar-se, foi neste lugar que D. Dinis instalou a sede do Estudo Geral, após a sua primeira transferência de Lisboa para Coimbra, no início do século XIV (1308). No meado do século XVI construiu-se neste local o Colégio Real de São Paulo o Apóstolo, inaugurado em 1563 (dele sobram quatro belíssimas tábuas pintadas por Simão Rodrigues e Domingos Vieira Serrão entre 1606 e 1613 – MNMC – alusivas à Vida e Martírio de S. Paulo, números novos P292, P293, P294 e P295).

Depois da extinção das ordens religiosas (1834), o velho colégio Real, embora laico, foi cedido à Universidade que ali fez erguer o malogrado Teatro Académico (1838), que viria a sucumbir num incêndio em 1888. A partir de 1913 arrancam as obras de reconstrução da extensão arruinada, projectadas pelo arquitecto Augusto da Silva Pinto, para transformar este espaço no da Faculdade de Letras.

A partir de 1942 começa então o novo plano de transformação deste edifício da Faculdade de Letras, e em 1944 surge o anteprojecto da fachada principal da nova Biblioteca Geral, e nele podiam ver-se os grupos escultóricos que a ladeiam, contratados entre a Comissão Administrativa do Plano de Obras da Cidade Universitária de Coimbra (CAPOCUC) e o escultor António Duarte no mesmo ano.

O edifício da Biblioteca foi gizado pelo arquitecto Alberto José Pessoa, com a chegada colaboração de Cottinelli Telmo (que faleceu antes do termo do processo). Conhecem-se várias versões da fachada principal até à definitiva, datada de 1949, mantendo os grupos escultóricos dos cunhais contratados em 1944 e acrescentando-se, na moldura inferior, os seis relevos “modernistas” que Duarte Angélico viria a terminar em 1950 (datados e assinados). As peças escultóricas de António Duarte, dos cantos do edifício, foram instaladas no local em 1951, e a inauguração do edifício foi em Maio de 1956.

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Importa reconhecer que a Praça da Porta Férrea estava praticamente definida entre 1943-44, bem como a selecção dos escultores e das obras que realizariam nos dois edifícios primeiros (as Letras e a Biblioteca Geral), muito embora a colocação final das obras tenha demorado mais tempo, devido ao fluxo natural dos tão extensos estaleiros.

A escolha de António Duarte (1912-1998) para o risco e realização da grande celebração da dignidade do conhecimento nos cunhais da Biblioteca não deve ter sido difícil, na medida em que este escultor usava da linguagem plástica necessária ao cumprimento da tarefa. Como ele próprio registou, no âmbito da teoria da arte dos anos 20 aos 40 do século XX, quando a arte portuguesa procurava o seu caminho entre as formas mais tradicionais e a modernidade, a escultura deveria mostrar-se num “modernismo com ordem”, ou num “naturalismo simplificado”, afastando-se do artificialismo e da retórica que alienavam o leitor, inviabilizando a interpretação da obra e o discurso que às artes importa promover. Estas palavras passaram à pedra nas obras que gizou para a Biblioteca Geral, na medida em que as tríades aqui esculpidas nos ensinam o que podem significar estes dois conceitos operativos.

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Vamos lendo, quando nos dedicamos a investigar sobre estes dois grupos escultóricos, que aqui se representam as Artes Liberais. Não o podemos garantir, mas também não vamos repudiar liminarmente essa significação. Ainda assim, somos levados a colocar-nos algumas interrogações de método, já que os elementos iconográficos alusivos às Sete Artes Liberais patentes nos dois grupos bastam-se à lira (Música), do lado esquerdo da fachada, no suposto grupo alusivo ao Quadrívium (as quatro vias dos números: a geometria, a aritmética, a música e a astronomia). As restantes personagens, nos dois grupos, ostentam ramos de louro, um livro e um rolo de papiro (glória, sabedoria, poesia, conhecimento, investigação). Ainda nos podemos questionar sobre a razão que levou o escultor a representar neste primeiro grupo apenas três ciências ou invés de quatro. Do suposto lado do Trívium (as três ciências da linguagem: a lógica, a gramática e a retórica) deviam constar três personagens femininas, o que não acontece.

Para além do problema do total de seis personagens exibidas, ao invés das desejáveis sete, também persiste o problema do género, na medida em que se esculpem três figuras masculinas e outras três femininas, quando as sete artes costumam fazer representar-se, todas elas, através de mulheres (tal como a própria Ciência). Sabemos da longínqua relação entre as artes liberais e os sete planetas, com a seguinte correspondência: a gramática identifica-se com a Lua, a lógica com Mercúrio, a retórica com Vénus, a aritmética com o Sol, a Música com Marte, a geometria com Júpiter e a astronomia com Saturno. Esta correspondência explicaria o grupo da direita (ligado ao Trívium), com as alegorias à gramática (representando-se através de uma figura feminina, a Lua), à lógica (Mercúrio) e à retórica (Vénus) mas incandescia o problema do grupo da esquerda, que se faz de dois homens e de uma mulher, quando os planetas do Quadrívium são todos masculinos (Marte, Júpiter, Saturno e Sol).

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Acresce a este grupo de inquérito referir outra dúvida que nos assoma, presa agora com os relevos de Angélico Duarte que decoram a mesma fachada desde 1950, onde se repetem algumas das áreas do saber que se apresentariam nos grupos dos cunhais, tal como a Matemática, a Gramática e a Lógica. Se os grupos de António Duarte querem significar as Artes Liberais, os relevos tornar-se-iam pleonásticos, facto que não nos parece muito plausível.

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Ultrapassando todas estas incertezas, bem como as possíveis correspondências que nos permitam nomear os grupos de António Duarte na Biblioteca Geral, acreditamos que este conjunto intenta celebrar a dignidade do conhecimento universal, facto que não é estranho à narrativa escultórica da Praça da Porta Férrea. Para isso, o escultor evoca, de forma muito sumária e linear, as tríades egípcias. Os dois grupos apresentam, cada um, três personagens idealizadas, frontais, firmes e simétricos, esboçando um movimento simples, com o avanço de cada uma das pernas esquerdas. Os rostos, de feições cúbicas, apresentam-se praticamente sem expressão, salvando-se um esboço muito ténue de um sorriso idêntico para todas as figuras. Os corpos não se esculpiram integralmente nus, por motivos presos com o decoro que assim no-lo impunha em Coimbra. Ainda assim, o autor viu-se obrigado a resumir o tamanho do peito das personagens femininas, dever que também coube a Barata Feyo na fronteira Safo que, apesar disso, não foi poupado às algazarras aquando da inauguração pública das peças.

Olhando para os dois grupos de escultura que tentamos resumir neste pequeno artigo, deciframos as ideias de firmeza, de dignidade, de vitória e, sobretudo, de perpetuidade, ideias que subjazem à função que cumprem nos cunhais da Biblioteca Geral que, por sua vez, guarda o saber que se almeja seguro, edificante e contínuo, ou perene.

Texto de Carla Alexandra Gonçalves
Fotografia de Bruno Pires

(Publicado a 26 de Setembro de 2013)

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